sexta-feira, 15 de maio de 2009

Em busca do capitalismo criativo

por Cynthia Rosenburg e Aline Ribeiro
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Ilustrações MYS

Um dos ícones
do capitalismo,
Gates faz agora
um chamado às empresas:
“Elas têm as habilidades
para criar inovações
que beneficiem
os mais pobres”
No fórum econômico mundial, em debates nas universidades e num manifesto publicado na revista Time, Bill Gates, fundador da Microsoft, conclama as empresas a usarem a imaginação para reduzir a pobreza e a desigualdade por meio da criação de oportunidades de negócios. Bem-vindo à segunda onda de inovações na base da pirâmide: co-nheça as experiências mais promissoras no Brasil e lá fora para incluir uma parcela gigantesca da população que permanece à margem numa época de enormes avanços na ciência, na medicina e na tecnologia.

O economista austríaco Joseph Schumpeter, um dos mais notáveis pensadores do século 20, cunhou a expressão “destruição criativa” para designar a revolução permanente do capitalismo que avança à medida que novas tecnologias, empresas e modelos de negócios substituem os antigos. Para Schumpeter, a inovação é a força motriz do capitalismo. Mais de meio século após sua morte, um dos empresários mais inovadores e dono da maior fortuna dos Estados Unidos, William Henry Gates III, conclama as corpo-rações a usarem a imaginação para livrar o capitalismo de uma de suas mais clamorosas imperfeições: o mesmo sistema que hoje leva o mundo à produção de riqueza numa escala jamais imaginada não consegue eliminar uma desigualdade brutal entre os mais ricos e os mais pobres. “Capitalismo criativo” é como Bill Gates, fundador da Microsoft, batizou esse desafio no Fórum Econômico Mundial realizado em janeiro passado em Davos, em encontros em universidades e com personalidades do setor público e dos negócios e num artigo-manifesto publicado recentemente na revista Time.

Gates argumenta que os avanços recentes na ciência, na tecnologia, na medicina, na economia e na política fazem com que o mundo de hoje seja muito melhor que o mundo do passado. A expectativa de vida nunca foi tão alta, há novas possibilidades de cura para diversas doenças, as mulheres conquistam cada vez mais espaço na sociedade e mais pessoas podem escolher seus governantes em eleições democráticas, entre muitos outros aspectos. Esses avanços, porém, não resolvem a desigualdade – muitas vezes, contribuem para acentuála – e não beneficiam a população global como um todo. Uma parcela gigantesca da humanidade se mantém à margem dos benefícios do progresso. “Cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo não têm o suficiente para comer, eletricidade ou acesso a água potável, coisas básicas para nós”, afir-ma Gates. E conclui: “No sistema capitalista, quanto maior a riqueza das pessoas, maior é o incentivo financeiro para que elas tenham suas necessidades atendidas. Quanto menor a riqueza, menor o incentivo. Precisamos encontrar uma maneira de fazer com que os aspectos do capitalismo que beneficiam os mais ricos beneficiem também os mais pobres”.

Em junho passado, Gates deixou a Microsoft (leia entrevista na pág. 92) para se dedicar à Fundação Bill & Melinda Gates. A instituição foi criada por ele e pela mulher, em 2000, para desenvolver projetos e injetar recursos que ajudem a com-bater a pobreza, com base em critérios sofisticados de avaliação de resultados. Em 2006, ao receber uma doação de US$ 30 bilhões do investidor Warren Buffett, tornou-se a maior organização filantrópica privada global. Com base em sua experiência na fundação, Gates poderia sugerir o assistencialismo como solução para as mazelas do mundo. Em vez disso, a reinvenção que propõe passa principalmente pelas forças do mercado – e dependerá em boa medida da capacidade de as empresas criarem negócios que envolvam as camadas mais baixas. “As instituições sem fins lucrativos e os governos têm um papel essencial na solução dos problemas, mas levarão tempo demais, se trabalharem sozinhos”, afirma. “São as em-presas que têm as habilidades para desenvolver inovações que beneficiem os mais pobres. O desafio é desenhar um sistema no qual incentivos como lucro e reputação direcionem as companhias para esse caminho. O capitalismo criativo é uma abordagem na qual empresas, governos e organizações sem fins lucrativos trabalham juntos para ampliar o alcance do mercado de maneira que seja possível reduzir a desigualdade.”

A conclamação de Gates despertou uma discussão acalorada. Entre outros motivos, por seu histórico empresarial. A Microsoft não só jamais buscou desenvolver negócios com a população mais pobre como também cresceu amparada em práticas reconhecidamente anticompetitivas. Em janeiro deste ano, o jornalista político americano Michael Kinsley criou o blog Creative Capitalism – A Conversation, no qual convida outros jornalistas, economistas e demais interessados a deba-ter as idéias de Gates. Desde então, uma torrente de análises e manifestações vêm sendo publicadas no site. Algumas serão reunidas num livro, com lançamento previsto para o fim deste ano. As principais considerações foram relatadas por Kinsley num artigo intitulado A Audácia de Bill Gates, publicado na mesma edição da revista Time em que o bilionário defendia a urgência de “consertar” o capitalismo. “Os entusiastas do livre mercado acreditam que qualquer objetivo que o capitalismo tenha fracassado em atingir só pode ser culpa da interferência do Estado”, escreve Kinsley. “Há quem acredite que a ênfase de Gates em mudar o comportamento das grandes corporações seja equivocada. Melhor seria, dizem eles, espalhar a música do livre mercado em lugares onde a corrupção e a burocracia ainda sufocam o capitalismo.”

Gates diz que o desafio
é criar incentivos de mercado
para que as empresas desenvolvam
negócioscom as populações mais pobres.
O que elas ganhariam com isso?
Lucros e reputação
Na conclusão do artigo, Kinsley alerta os leitores para o fato de que ele próprio trabalhou para a Microsoft por sete anos e é casado com uma consultora e ex-presidente da Fundação Gates. E afirma que a reação geral à nova proposta do ex-patrão tem sido positiva. “Ninguém pode condená-lo pelo fato de colocar questões importantes em discussão”, afirma. “O timing é perfeito. Há um interesse crescente, especialmente entre a população jovem, em ajudar os mais pobres, e até mesmo a corporação mais troglodita está sendo pressionada a ser ambientalmente correta. É o momento certo para que o maior titã corporativo de todos os tempos dirija sua atenção para os problemas que o software não pode resolver.”


Há uma crítica recorrente ao chamado de Gates: a de que seria abrangente demais. “O mais frustrante sobre o debate iniciado por Bill Gates é que o termo ‘capitalismo criativo’ é muito vago e engloba os mais diferentes tipos de atividade”, afirma Clive Crook, comentarista do britânico Financial Times. De fato, na parceria entre setores proposta por Gates há de tudo um pouco – de iniciativas de promoção do comércio justo (que permitam, por exemplo, que pequenos agricultores de café tenham sua produção vendida para grandes redes como a Starbucks) a ações que mais lembram os primeiros projetos de responsabilidade social das empresas (como a campanha RED, criada pelo músico e ativista Bono Vox, segundo a qual companhias como Gap ou Hallmark direcionam uma parcela do lucro de determinadas linhas de produto para o Fundo Global de Luta contra Aids, Tuberculose e Malária). Mas é também verdade que Gates dá ênfase especial a um aspecto bastante específico e considerado muito promissor: a possibilidade de as empresas encontrarem formas lucrativas de se relacionar com a população mais pobre. Nesse terreno, a própria Microsoft está tentando se mexer. Em abril de 2007, a companhia criou o Unlimited Potential Group, uma divisão formada por 150 funcionários que tem como objetivo desenvolver soluções de tecnologia para as classes C, D e E em mercados como América Latina, China, Índia, Ásia e Europa Central. A meta é alcançar 1 bilhão de pessoas até 2015. “Cinco bilhões de pessoas são hoje excluídas do mercado de tecnologia”, afirma Jorge Salles, gerente do Unlimited Potential Group para a América Latina. “Vamos trabalhar com outros parceiros para testar novos produtos e modelos de negócios voltados para esse público. Aqueles que tiverem resultados positivos tanto do ponto de vista econômico quanto social serão incorporados pela Microsoft.”

Mulheres da comunidade
distribuem o Shoktidoi,
iogurte criado pela
Grameen Danone Foods
para combater
a desnutrição infantil

A criação de negócios que beneficiem ao mesmo tempo a população pobre e as empresas, defendida por Gates, vem sendo objeto de estudo de diversos pensadores nos últimos anos. Um deles é freqüentemente aclamado pelo fundador da Microsoft: o indiano C. K. Prahalad, professor da Universidade de Michigan, responsável por popularizar no mundo corporativo a teoria da “base da pirâmide”. Num artigo que data de 2002 escrito em parceria com Stuart Hart, professor da Univer-sidade Cornell, Prahalad chamou a atenção das empresas para as 4 bilhões de pessoas que sobrevivem com uma renda anual de até US$ 1,5 mil. (Um estudo do WRI/IFC de 2007 apontou 4 bilhões de pessoas com renda anual de US$ 3 mil.) Segundo Prahalad, o poder de compra dessa população – sem acesso a produtos e serviços que caibam nos seus bolsos – é expressivo e representa uma enorme oportunidade de negócios para as grandes corporações, que enfrentam mercados cada vez mais saturados nas classes altas e têm voltado suas atenções para os países emergentes. Ao vender para os pobres, as empresas – especialmente as multinacionais, com seus pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento e suas enormes redes de distribuição – ajudariam a aliviar a pobreza. As referências usadas por Prahalad no livro A Riqueza na Base da Pirâmide tornaram-se famosas. Entre elas, estão a brasileira Casas Bahia, que se transformou numa potência do varejo ao concentrar seus negócios nas classes C e D, e a Hindustan Lever, subsidiária da Unilever na Índia, que desenvolveu, entre outros produtos, um sabonete antibacteriano especialmente para a baixa renda.

Foto Robyn Twomey/Corbis/Latinstock; Edição De Imagem Marcelo Biscola; Foto divulgação

Época Negócios;

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